quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Há dois Douros

(Há um Douro de aparência, de eventos, de próspera superficialidade, e há o Douro profundo, da ruralidade, hoje palco da miséria, do desemprego, da falência da vinicultura. Julga o Douro da aparência que consegue sobreviver sem a solidez do Douro profundo. E os novos barões do Douro, emissários dos caprichos da capital e subservientes à ladroagem comercial do Porto, cá andam felizes e contentes a atirar-nos areia aos olhos com manobras de diversão. Se o Douro profundo cair, o da aparência pouco mais durará)

Quem passa por esta Vale Encantado e olha para a sua beleza rude, deliciando-se com memórias de géneses que são comuns a todos, e espraia o pensamento na melancolia arrepiante das suas auroras ou pores-do-sol; quem pára e repara na brisa evocativa que, quase sempre, dança entre o rio e a encosta como uma bailarina ao som das vozes de cantadeiras que pairam nas recordações imperceptíveis que só a alma discorre, não sabe que o Douro que vê não é só um. A sua unicidade e solidez está quebrada por anos de incúria, incompetência e desrespeito à sua essência. Há dois Douros: o que se vê e que se ouve, e um outro que anda escondido na vergonha própria e no silêncio a que o obrigam os castradores do futuro.O Douro nunca foi terra pacífica, pois nela sempre se ergueram combates: contra a prepotência do Poder, contra a doença de homens e vinha, contra a serra agreste, o rio violento, contra a miséria que escravizou gerações.

Mas o Douro teve sempre uma alma que, apesar das machadadas, nunca se rasgou. Vai-se rasgando agora, à custa de modernidades mais empedernidas e balofas que o verdete ancestral das nascentes cobertas pelos silvados. Há um Douro que brilha nas capas das revistas da moda, que vem no catálogo dos bens da Humanidade, que resplandece nos eventos fúteis que meia dúzia de barões, políticos há séculos agarrados à gamela, lhe proporcionam, mais a olharem para os próprios umbigos do que para o Vale. Vale que os sustenta na ambição, na vaidade, no poder, nos salários chorudos e nas reformas imerecidas que os esperam. O Douro sempre assim foi: generoso para com quem lhe seca as tetas, e carrasco para quem o trata com seriedade. E é essa gente, que existe porque o Douro existe, que sobrevive porque o Douro lhes paga, que – no ripanço da mordomia, fazendo que faz – lhe tenta dar essa imagem irreal e desvirtuada. E quem vai nesta cantiga, chega a convencer-se que o paraíso pousou aqui. A fachada é de tal ordem, densa e protegida, o cambão dos interesses políticos é tão cerrado, que é muito difícil descobrir o outro lado do Douro, o verdadeiro, aquele que ainda luta para que o sustentáculo da sua razão de ser não se desmorone na tragédia que querem ocultar.
É o Douro do desemprego rural, da gente que anda há meses com o corpo curtido do sol sem receber salário, dos pequenos agricultores que são fustigados dia-a-dia com cartas do Banco a reclamar débitos, dos lavradores que têm de se governar com os preços das suas produções a reduzirem-se à ínfima e os custos das mesmas a dispararem. E há também a queda da Casa do Douro – ainda há anos o grande pilar da região e suporte dessa coisa linda que se chamou interprofissionalismo – a desabar debaixo dos torpes ataques de governos incapazes, de ministros vingativos e de um Comércio cego que há-de ser vítima dos lobos que soltou. Este é o lado obscuro do Douro, o lado que os tais barões tentam encobrir, porque desvendá-los, é denunciar também a sua incompetência em resolver os problemas a que se comprometeram dar solução, é bradar aos céus pela incúria com que vestem um Douro de fato novo mesmo sabendo que as ceroulas estão rotas e puídas, é acusá-los de vendilhões num templo onde a actividade vinícola foi arrasada do altar.

Como se o Douro pudesse existir sem a vinha, sem os seus muros de xisto, sem os seus socalcos tratados. Como se houvesse alguma viabilidade para todo o resto – seja ele qual for – se este Douro tricentenário de escadarias, caísse em ruínas!Como uma velha beladona que trata com minúcia das rusgas, usando cremes e tratamentos caros e de eficácia duvidosa, assim é o Douro, que anda preocupado com a aparência, mesmo sabendo que, por dentro, tem os órgãos vitais a apodrecer. E o Douro serve para tudo: até para acolher políticos fracassados, escorraçados de Lisboa, e que há muito deviam ter regressado às suas profissões de origem mas que, por via do tal Douro generoso, ainda se mantêm em funções fazendo da tal política a sua profissão e do Douro a fonte de rendimento.
São esses que o pintam de dourado e a quem convém esconder esse lado trágico e negro do Douro. Desse obscurantismo dependem o seu futuro político, os seus tachos, a sua influência, a doce vida de andar a vender tretas sem pregar prego nem estopa.E olham, com olhar de cordeiro que mascara o do crocodilo, o roubo de um cadastro, como se o mesmo fosse obra de um acaso e não custasse gerações de trabalho, numa apropriação que transforma o Governo que pariu a Lei, num bandido pior que um salteador de estrada. Não é nada com eles, os barões do Douro, emissários zelosos de Lisboa, curvados em vénia permanente aos mandantes da capital, que medem o Douro pelos arráteis de ignorância que lhes preenche o cérebro. Querem fazer do Douro o que ele não é. Querem transformá-lo à mercê dos interesses que o querem descarnar.

Mas desiludam-se, que a terra é curta mas Deus é grande! E o deus do Douro não perdoa. Destruam a raiz ao Douro e depois queixem-se que por lá não medra nem vinha, nem oliveira, nem pomar, nem hotel, nem golfe, nem passeatas no rio, nem nada! O Douro sem a vinha e o assento que a sustenta, não é nada! É um monte com um rio em baixo, como muitos outros montes com rios em baixo!Julgam-no inesgotável, como julgavam o mar. Mas não é assim. O Douro tem que ser trabalhado todos os dias. O Douro vinícola tem que ser foco das atenções todas as horas. Porque, se não o for, tudo o resto acabará.Continuem a cuidar da aparência do Douro e não lhe tratem da essência, e depois verão no que dá essa insensatez.
por Francisco Gouveia, Eng.º in Noticias do Douro