Quem passa por esta Vale Encantado e olha para a sua beleza rude, deliciando-se com memórias de géneses que são comuns a todos, e espraia o pensamento na melancolia arrepiante das suas auroras ou pores-do-sol; quem pára e repara na brisa evocativa que, quase sempre, dança entre o rio e a encosta como uma bailarina ao som das vozes de cantadeiras que pairam nas recordações imperceptíveis que só a alma discorre, não sabe que o Douro que vê não é só um. A sua unicidade e solidez está quebrada por anos de incúria, incompetência e desrespeito à sua essência. Há dois Douros: o que se vê e que se ouve, e um outro que anda escondido na vergonha própria e no silêncio a que o obrigam os castradores do futuro.O Douro nunca foi terra pacífica, pois nela sempre se ergueram combates: contra a prepotência do Poder, contra a doença de homens e vinha, contra a serra agreste, o rio violento, contra a miséria que escravizou gerações.
Mas o Douro teve sempre uma alma que, apesar das machadadas, nunca se rasgou. Vai-se rasgando agora, à custa de modernidades mais empedernidas e balofas que o verdete ancestral das nascentes cobertas pelos silvados. Há um Douro que brilha nas capas das revistas da moda, que vem no catálogo dos bens da Humanidade, que resplandece nos eventos fúteis que meia dúzia de barões, políticos há séculos agarrados à gamela, lhe proporcionam, mais a olharem para os próprios umbigos do que para o Vale. Vale que os sustenta na ambição, na vaidade, no poder, nos salários chorudos e nas reformas imerecidas que os esperam. O Douro sempre assim foi: generoso para com quem lhe seca as tetas, e carrasco para quem o trata com seriedade. E é essa gente, que existe porque o Douro existe, que sobrevive porque o Douro lhes paga, que – no ripanço da mordomia, fazendo que faz – lhe tenta dar essa imagem irreal e desvirtuada. E quem vai nesta cantiga, chega a convencer-se que o paraíso pousou aqui. A fachada é de tal ordem, densa e protegida, o cambão dos interesses políticos é tão cerrado, que é muito difícil descobrir o outro lado do Douro, o verdadeiro, aquele que ainda luta para que o sustentáculo da sua razão de ser não se desmorone na tragédia que querem ocultar.
Como se o Douro pudesse existir sem a vinha, sem os seus muros de xisto, sem os seus socalcos tratados. Como se houvesse alguma viabilidade para todo o resto – seja ele qual for – se este Douro tricentenário de escadarias, caísse em ruínas!Como uma velha beladona que trata com minúcia das rusgas, usando cremes e tratamentos caros e de eficácia duvidosa, assim é o Douro, que anda preocupado com a aparência, mesmo sabendo que, por dentro, tem os órgãos vitais a apodrecer. E o Douro serve para tudo: até para acolher políticos fracassados, escorraçados de Lisboa, e que há muito deviam ter regressado às suas profissões de origem mas que, por via do tal Douro generoso, ainda se mantêm em funções fazendo da tal política a sua profissão e do Douro a fonte de rendimento.
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Mas desiludam-se, que a terra é curta mas Deus é grande! E o deus do Douro não perdoa. Destruam a raiz ao Douro e depois queixem-se que por lá não medra nem vinha, nem oliveira, nem pomar, nem hotel, nem golfe, nem passeatas no rio, nem nada! O Douro sem a vinha e o assento que a sustenta, não é nada! É um monte com um rio em baixo, como muitos outros montes com rios em baixo!Julgam-no inesgotável, como julgavam o mar. Mas não é assim. O Douro tem que ser trabalhado todos os dias. O Douro vinícola tem que ser foco das atenções todas as horas. Porque, se não o for, tudo o resto acabará.Continuem a cuidar da aparência do Douro e não lhe tratem da essência, e depois verão no que dá essa insensatez.
por Francisco Gouveia, Eng.º in Noticias do Douro