sexta-feira, 16 de abril de 2010

" O Marinheiro" Fernando Pessoa

Segunda Veladora - ... Não minha irmã, esse que vedes busca sem duvida um porto qualquer, não podia ser que aquele que eu vi, buscasse qualquer porto....
... sonhava com um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras, hirtas,poucas, e aves vagas passavam por elas...não vi se alguma vez pousavam...Desde que naufragado se salvara o marinheiro vivia ali...

... Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido; pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país, com outras espécies de paisagens e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas...

...Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das palmeiras, que se recortava orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas....

.... Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível. Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de haver passado ao longo de suas costas...

...Sabia de cor suiam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades... a supostaaa....

.... Não se deve falar demasiado... A vida espreita-nos sempre...Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber; ... Quando falo demais começo a separar-me de mim e aouvir-me falar. Isso faz com que me compadeça de mim própria e sinta demasiadamente o coração.

...Tenho então uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como a um fillho... VEDE:: O horizonte empalideceu... O dia não pode já tardar... será preciso que eu vos fale ainda mais do meu sonho?

...Sim falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de vo lo contar. À medida que o vou contando, é a mim também que o conto... São três a escutar.... (estremeço) três não...não sei ...não sei quantas...

( O marinheiro, o que sonhava o marinheiro?)

...Ao princípio...ele criou as paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a uma cinzelando-as na matéria da sua alma; - uma a uma as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os portos...

...Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas... Passou a conhecer certa gente, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as vidas passadas, e as conversas e tudo isto, era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo...

...Depois viajara recordando através do país que criara... E assim foi construindo o seu passado.. Breve tinha uma outra vida anterior... Tinha já nessa nova pátria um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos aonde embarcara...ia tendo todos os companheiros da infância, e depois os amigos e os inimigos da sua idade viril...

...Tudo era diferente de como ele o tivera. - nem o país nem a gente, nem o seu passado próprio, se pareciam com o que haviam sido...

...Causa-me tanta pena falar disto!... Agora porque vos falo disto, aprazia-me mais estar-vos falando de outros sonhos...

...Um dia que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar a sua pátria verdadeira...mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele...Meninice de que se lembrasse, era-a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara... toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido...

...Se ele nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava... E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido.. Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento podem crer...

...Ó minhas irmãs minhas irmãs,... há qualquer coisa, que não sei o que é, que vos não disse... Qualquer coisa que expliucaria tudo isto... a minha alma esfria-me...mal sei se tenho estado a falar...; Falai-me, Gritai-me para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante vós e que há coisas que são apenas sonhos..................................
( enxerto de " O Marinheiro" De Fernando Pessoa, que devo interpretar decoradíssimo no espéctáculo da Aula Magna no exercício final do Curso de Teatro e Artes Performativas)

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